Wednesday, January 19, 2005

Ensaio de uma confissão

Queria contar-te que tenho medo, afinal...que apesar dos sorrisos ligeiros que vês delineados todos os dias durante o café preenchido de banalidades que partilhamos, receio que um destes dias, na superfície da mesa onde o teu cotovelo pousa distraidamente enquanto assumes um ar pensativo, o vazio se instale e de ti só permaneça o espaço que deixaste desocupado e sem som... procuro na tua expressão algum indício de cansaço nesse espaço que ocupas, sinto em mim a certeza de que te ganhei mais um dia, de que vivi o dia de hoje porque estavas lá, porque acordaste-o comigo, porque a tua voz invadiu a minha madrugada e eu ouvi-te, sonolenta e entontecida pela tua energia. Recrio-te todos os dias, reinvento-te na minha vida como uma pintura à qual vou acrescentando ou mudando algum tom...Queria contar-te tudo isto, meu amor, mas tenho medo de que na verdade não exista em ti e que tudo não seja mais do que uma tela vazia.

Saturday, January 15, 2005

Interlúdio de uma alma serena

Já não tenho medo do vazio, somente uma necessidade cada vez mais atenta em preenchê-lo, em procurar pequenos e grandes elementos que cubram todo um espaço ansioso de novos cheiros, de curiosos sorrisos, de cores únicas e de olhares puros e abertos. Sou eu, todos os dias em espera de uma manhã que me acorde, de um fim de tarde onde repouse o meu espírito e de uma noite que me aconchegue e me cure de um satisfeito cansaço. Quero do sol a luz que me cega os olhos com a sua intensidade, do vento o ar que me agita e segue o seu rumo para além de mim, da água o líquido que me acolhe e refresca as frontes. Quero ser eu, quero ser outra que não eu, quero ser e não ser, quero viver sendo eu tomada de outros eus curiosos em ocupar-me. No fundo, quero ser, acima de tudo ser.

Saturday, January 08, 2005

Ensaio de um conto

E no mundo como o conhecemos, desigual e único, algures atrás de uma janela gotejada pelas chuvas que escorriam melancolicamente numa rua cinzenta, uma mulher espreitava, encostando a sua testa pensativa; seu olhar vago e perdido num vazio indefinido vertia limpidez e abandono. Rodeava-a um espaço de cores claras, com objectos colocados ao acaso, como se tivessem sido espalhados por uma mão distraída e absorta em mundos só seus e de códigos diferentes. O seu cabelo, desordenado no seu rosto, era de uma cor indefinida e rebelde, que ela distraidamente tentava prender atrás da orelha, sem se dar conta de que algures, alguém, fora dessa janela, a observava minuciosamente, atento a todos os seus gestos, ao movimento do seu lábio inferior distraidamente apertado entre os seus dentes, das suas unhas que ela insistia em arrastar lentamente pelo vidro embaciado do seu bafo, como se o acariciasse. Ao homem de pullover e calças cinzentas, que se encontrava encostado numa porta à espera do descanso das chuvas, aquela mulher parecia um anjo de tentação, coberta por uma película de névoa que a tornava quase etérea, o vazio dos seus olhos suplicava a plenitude e as suas mãos prometiam mundos infinitos. O homem encostou a sua cabeça à porta, aspirando profundamente o cheiro inconfundível e limpo de uma chuva acumulada no verão quente e árido, e no seu pensamento, a mesma frase insiste em repetir-se " And I miss you like the deserts miss the rain...". Rindo-se de si próprio com escárnio manso e condescendente, põe-se em posição de marcha e começa a correr por entre a chuva assídua e regular que insiste em cair. Já não olha para trás e não pode ver que o som do seu riso desperta a mulher da sua visita interior e que se acendeu um sorriso da mais luminosa beleza no seu rosto gotejado, numa rua cinzenta.

Sunday, January 02, 2005

Quero tocar a felicidade

Ser feliz pode ser uma aprendizagem dos afectos, aprendendo a olhar nos olhos dos outros, não como um reflexo de nós mesmos, mas procurando lá o que há de único nesse ser que se nos depara e que o torna alvo da nossa atenção. Devemo-nos perguntar se de facto somos bons aprendizes quando olhamos à nossa volta e vemos que na verdade não conhecemos quem escolhemos fazer parte do nosso mundo de relações. Há todo um mundo paralelo a que não acedemos, talvez porque tivéssemos medo de o descobrir e assim descobrirmo-nos a nós mesmos. Os afectos são por si só transporte de felicidade e de paz, elevam-nos um sorriso ao olhar. Ser feliz é saber estar com os que gostamos, é ouvir com o coração, é habitar um bocadinho da alma dos escolhidos, uma conquista constante.

Saturday, January 01, 2005

Desejos repetidos

E lá demos nós mais um salto para um ano ímpar! E mais uma vez renovámos votos, desejos, sorrisos, expectativas. E do mesmo modo esquecemos medos, intempéries dentro e fora de nós, tudo o que não conseguimos controlar. É sempre assim, quando encerramos uma porta para abrirmos outra que nos parece uma janela invadida pela luz que nos encandeia e nos deixa abismados por força tal que nos atravessa o ser e nos inunda de sonhos iluminados e de esperanças. É nesta constante mudança que o futuro se constrói, que o presente se vive e que o passado descansa.