Saturday, March 26, 2005

Empréstimo de felicidade

Olho-te sem na verdade te ver, pois olho para além de ti, olho para o que és antes de mim, antes de eu ter esbarrado contigo numa rua superpovoada de gente anónima e de olhares perdidos.E para além de ti, imagino o que nunca vi, a tua infância de sorrisos luminosos, o teu despertar em manhãs húmidas, a tua inquietação na descoberta do amor que te deixava noites a sonhar acordado, a ensaiar uma declaração tão simples como "gosto muito de ti". Recebi de ti, num encontrão numa rua estranhamente silenciosa, tudo o que és para além do que amo. E a cada olhar que sinto voar por ti, que se estende pelos teus ombros distraídos, sinto que contraímos um empréstimo de felicidade, com data indefinida de validade, e com o sobressalto constante de receber um aviso do seu termo quando ainda consigo olhar para além do que és no presente que me ocupas. Desperto destes devaneios com a tua voz a falar de qualquer banalidade e sorrio distraidamente, guardando este segredo para um momento em que te possa sussurrar as palavras que se soltam no meu pensamento quando te olho, sem na verdade te ver.

Wednesday, March 09, 2005

In solitude we cry

Num tratado de solidão, não existe espaço para duas pessoas que se deitam juntas em posição semi-fetal, acolhidas uma na curva da outra, atentas à respiração e ao pulsar mútuo. Neste manifesto contra a solidão, há um lençol que se partilha e que cobre dois corpos ocupados de amor e de sorrisos de cumplicidade. Para demonstrar que não há solidão neste leito nem para além dele, alguém se vira para o outro e, de olhos abertos e puros, ambos procuram uma verdade única e exclusiva que partilham: que o amor existe, que eles existem porque o amor existe, e que no fim de cada dia se encontram repletos da vida que depositaram um no outro, a qual sabem ser sempre um espaço comum de afectos impronunciáveis e de silêncios plenos de mensagens secretas apontadas num livro feito de luz no coração de cada um. Numa moção de censura contra a solidão estão duas pessoas sentadas num café ao fim de uma tarde em que o sol morno aquece os rostos leves e doura os sorrisos húmidos e abertos aos olhares e gestos que alimentam a linguagem universal de mundos secretos comuns. E nesta mesa de café, duas mãos estão fingidamente pousadas ao acaso, tamborilando distraidamente à procura que outros dedos ofereçam um laço de ternura. A solidão não tem sentido quando, algures num mundo que nos espera à porta de nós, existem sorrisos que se desenham ao aspirar o cheiro das gotículas em que se desfazem as ondas ao rebentar num longo areal sedento de sal e de azul.

Monday, March 07, 2005

Caixa de Imagens

Num mundo onde só eu e o sonho coexistem, há lá uma caixinha que abro de vez em quando para me maravilhar com belezas repletas de magia. Ao abrir com um cuidado desmesurado a minha caixinha de imagens, algo do seu fundo vem emergindo e invade os meus olhos...e o que vislumbro à minha frente é um um imenso e almofadado campo de papoilas ondulantes, ao centro deste campo o meu olhar fixa-se nos corpos de dois amantes, que se encontram deitados, de mãos dadas e olhos fixos um no outro, como se tudo o resto não existisse, como o mundo de cada um deles estivesse ali, à sua frente, num olhar que engolia e levava alguém numa viagem de sorrisos, cumplicidades e silêncios dourados de empatias ancestrais. E eu, observando de forma ávida como quem vê uma película de um filme já visto por outros olhares, deslumbro-me à descoberta de pormenores que só eu terei o poder de partilhar, cansando o meu olhar de tal modo que os corpos me parecem respirar de forma ligeira e preguiçosa, quase sinto o movimento dos corpos nesta forma simples de se existir, a leve brisa que avança tímida sobre os cabelos espalhados...e neste quase voyeurismo a que me dedico sinto as papoilas transformarem-se em pequenas e trémulas pinceladas vermelhas que se movem em ondas macias e escondem parcialmente os contornos dos dois amantes perdidos de si e encontrados no outro...em algum momento, os amantes rodariam os seus corpos para um sol cúmplice e quente, e assim se prostrariam a receber as estrelas que mais tarde acabariam por pontilhar um céu imenso e claro. As papoilas, essas, recolheriam os dois amantes numa nuvem de orvalho e acalentariam o seu sono manso e reparador do amor pleno.