Saturday, January 08, 2005

Ensaio de um conto

E no mundo como o conhecemos, desigual e único, algures atrás de uma janela gotejada pelas chuvas que escorriam melancolicamente numa rua cinzenta, uma mulher espreitava, encostando a sua testa pensativa; seu olhar vago e perdido num vazio indefinido vertia limpidez e abandono. Rodeava-a um espaço de cores claras, com objectos colocados ao acaso, como se tivessem sido espalhados por uma mão distraída e absorta em mundos só seus e de códigos diferentes. O seu cabelo, desordenado no seu rosto, era de uma cor indefinida e rebelde, que ela distraidamente tentava prender atrás da orelha, sem se dar conta de que algures, alguém, fora dessa janela, a observava minuciosamente, atento a todos os seus gestos, ao movimento do seu lábio inferior distraidamente apertado entre os seus dentes, das suas unhas que ela insistia em arrastar lentamente pelo vidro embaciado do seu bafo, como se o acariciasse. Ao homem de pullover e calças cinzentas, que se encontrava encostado numa porta à espera do descanso das chuvas, aquela mulher parecia um anjo de tentação, coberta por uma película de névoa que a tornava quase etérea, o vazio dos seus olhos suplicava a plenitude e as suas mãos prometiam mundos infinitos. O homem encostou a sua cabeça à porta, aspirando profundamente o cheiro inconfundível e limpo de uma chuva acumulada no verão quente e árido, e no seu pensamento, a mesma frase insiste em repetir-se " And I miss you like the deserts miss the rain...". Rindo-se de si próprio com escárnio manso e condescendente, põe-se em posição de marcha e começa a correr por entre a chuva assídua e regular que insiste em cair. Já não olha para trás e não pode ver que o som do seu riso desperta a mulher da sua visita interior e que se acendeu um sorriso da mais luminosa beleza no seu rosto gotejado, numa rua cinzenta.

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