Empréstimo de felicidade
Olho-te sem na verdade te ver, pois olho para além de ti, olho para o que és antes de mim, antes de eu ter esbarrado contigo numa rua superpovoada de gente anónima e de olhares perdidos.E para além de ti, imagino o que nunca vi, a tua infância de sorrisos luminosos, o teu despertar em manhãs húmidas, a tua inquietação na descoberta do amor que te deixava noites a sonhar acordado, a ensaiar uma declaração tão simples como "gosto muito de ti". Recebi de ti, num encontrão numa rua estranhamente silenciosa, tudo o que és para além do que amo. E a cada olhar que sinto voar por ti, que se estende pelos teus ombros distraídos, sinto que contraímos um empréstimo de felicidade, com data indefinida de validade, e com o sobressalto constante de receber um aviso do seu termo quando ainda consigo olhar para além do que és no presente que me ocupas. Desperto destes devaneios com a tua voz a falar de qualquer banalidade e sorrio distraidamente, guardando este segredo para um momento em que te possa sussurrar as palavras que se soltam no meu pensamento quando te olho, sem na verdade te ver.